O homem que ficou...
(Texto criativo retirado de "amore de todas as cores")
(Fotografia meramente ilustrativa)
Quarta de manhã, como sempre, a saída de casa uma correria. Na noite anterior tinha adormecido tarde. Raio de vício de ficar a rabiscar até de madrugada que a apaixona, mas irrita de manhã. Tomou um banho rápido, cabelo mal aprumado, casaco, carteira, livros, e lá correu para mais um dia de trabalho. Quando chegou ao escritório (aquela confusão do costume para arranjar estacionamento) subiu, mas teve de voltar atrás porque se tinha esquecido do pc. Ao sair do edifício, vê no lado oposto um vulto que, de tão familiar, a fez estagnar. O seu coração começou a bombear como se fosse explodir, queria fugir mas os seus pés estavam colados ao chão. As imagens começaram a fulminar o pensamento: o quarto em tons de creme, o sabor a café adocicado, o cheiro a canela e limão, o toque de Midas (pelo menos era assim que a mente dela o descrevia - quando escrevia). Sem perceber muito bem o tempo (minutos contados em tempo perdido, horas passadas com o tempo parado - este era o tempo da sua vida) ficou a observá-lo sem conseguir evitar, sem conseguir fugir, ou escorregar dali para fora como da outra vez. Aquele andar imponente, o olhar sério, mas triste - pareceu-lhe mais triste do que sério. Estava mais velho, notava-se, mas bonito e charmoso; talvez mais até de quando loucamente se apaixonou perdidamente por ele. Parou na sua observação. Sim. Ela foi apaixonada por ele desde que se lembra. Miúda. E agora? Porque não anda? Porque tem o coração acelerado? - Os pensamentos eram tantos e tão intensos que a fizeram acordar e correu dali para fora. Subiu. Fugiu. Mas não conseguiu fazer parar o pensamento: o relógio não parou para ele e ele foi; feliz sem ela. O tempo não o deixou ficar e o tempo para ela parou naquele dia, naquele quarto. Naquele momento cedeu ao tempo e à tristeza. E foi ali, perdida na sua louca solidão que passou pelo tempo. O tempo que tão depressa passou por eles.
Correu escada acima , lágrima no olho a tentar controlar o descontrole; tentativa infrutífera. Estava a tristeza, a confusão estampada no rosto. Tentou-se recompor, mas não foi fácil. Por duas vezes o diretor (amigo de longa data e homem de sentimentos grandiosos) foi-lhe perguntar se não queria ir para casa. Se não queria conversar. Mas não queria ir para a sua solidão. Não conseguia lidar com aquele turbilhão de sentimentos; a cada momento pensava e a cada momento tentava fugir. Foi um dia extenuante. O seu trabalho requer muita concentração. Não tinha nenhuma, mas tentou. Não por profissionalismo; mentia se dissesse que sim; foi mesmo por puro egoísmo, medo. Medo de ter de lidar com tudo o que sentiu, pensou, desejou.
Foi sempre uma mulher de instintos carnais fortes, mas naquela tarde tudo lhe fazia pensar em luxúria. Aquele homem. Aquele momento, Os seus corpos enrolados. Estava tão chateada com os seus sentimentos, mas não conseguia deixar de pensar na boca, na força do seu sexo contra o dela. Que loucura! Fugiu desses pensamentos. Sentia-se, até, envergonhada (sem o ser). Preparou-se para o que temeu o dia todo. O reencontro com o tempo parado. Com o seu tempo de estar só consigo. Mas rapidamente afastou essa ideia com um telefonema. Jantar? Café? Sim. E lá ia ela adiar mais uma vez, quem sabe por mais vinte anos o reencontro com o tempo que deixou parado muito lá atrás. Tempo que ela quis parar sem querer. Tempo que ela parou sem o desejar. E lá foi ela escada abaixo (detestava elevadores); a Bia ligou-lhe e entre conversas lá se foi distraindo e descendo; descendo e distraindo.
Ao chegar à porta invadiu-a uma sensação de pânico. A lembrança daquela manhã reacendeu, mas, como sempre o seu pensamento - deixa lá isso, tu és forte - impeliu-a para a saída. E saiu. E, no momento em que sai, sentiu um toque. Sentiu aquele toque. Olhou ,de imediato, para a mão grande, masculina mas delicada que lhe tocava. Sentiu um arrepio corpo fora, a cabeça um turbilhão - não pode, não pode. Pareceu-lhe uma eternidade o tempo que demorou para o olhar nos olhos. E assim ficaram de novo. Sem uma palavra a olhar um para o outro. O que ele pensava não sabia, mas ela via de novo o homem mais Lindo do mundo à sua frente. Aqueles olhos verdes estagnados nos seus. Um semi sorriso entre o forte (sempre lhe pareceu um homem muito forte) e o envergonhado. Estava com o cabelo diferente, mais grisalho, apesar de sempre ter tido cabelo cabelo claro. Quer beijá-lo. Não quer nada. Quer, não quer. Mas não teve tempo de terminar o pensamento, quanto mais a decisão. Segurou-a. Beijou-a sem pressas, sem tempo. Um beijo doloroso de tão intenso; mal conseguia respirar. Perdeu-se naquele beijo. Quando a parou de beijar. Olhou-a de novo nos olhos; segurou-lhe a mão e levou-a para o carro. Não conseguia dizer uma palavra. Sentia o telemóvel a vibrar no bolso do casaco, mas não me conseguia mexer. Bolas! O Tempo. O tempo voltou a andar.