A filha do Amor e da tempestade.
Imagem meramente ilustrativa
texto criativo retirado dos textos "amore de todas as cores"
(…) O seu pensamento corria fugidio para as lembranças do seu passado. Viajou até ao momento em que reparou naquele rapazinho de gigantes lanternas verdes pela primeira vez. Teria uns treze anos quando, ao sair com as amigas do clube onde treinava atletismo, se cruzaram com os meninos da mesma idade que jogavam futebol. Maria já os tinha visto antes, pois era habitual cruzarem-se. Mas pela primeira vez invadiu os olhos gigantes daquele rapazinho que nunca levantava o olhar. Era o menos sociável do grupo, era o menos vaidoso. Chamou-lhe a atenção: os olhos verdes, as roupas escuras e o violão sempre às costas. Não demorou muito tempo para que se tornassem amigos e confidentes inseparáveis. Daí até se apaixonarem foi um feixe. Tudo os ligava um ao outro. A vida, os gostos, os pensamentos, a música, o desporto. Tudo os empurrava um para o outro. O sentimento entre os dois foi crescendo, foi agigantando e tudo “o primeiro” começou a acontecer: o primeiro olhar de paixão; o primeiro borboletar no estômago; o primeiro sorriso trocado; o primeiro vislumbre de desejo; o primeiro beijo - e o último. Nunca mais Maria pertenceria a uns lábios da mesma forma. Neste momento um arrepio surgiu enquanto ela retrocedia ao beijo do passado - o beijo é para ela, talvez, o mais íntimo e desconcertante gesto entre duas pessoas. Pensar naquele beijo doce, quente, leve e intenso - lábios que se degladiavam entre a doçura e a intensidade, beijo que a desconcertava e lhe tirava a respiração - deixam-na a arfar de saudade. Beijos desses são únicos: de tão únicos - são inesquecíveis. Nunca nenhum outro vai ter o mesmo efeito, nunca outro o tornará mais esquecido. Um beijo desses é um primeiro amor: que nunca se esquece e sempre é tão fácil reviver. O beijo. Aquele beijo de lábios que se deliciam e amam sem lembrar o amanhã. O beijo que tatua o seu significado para sempre; o beijo que nos tira o fôlego só de nele pensar. Aquele beijo que nos levanta as asas até à profundidade de te perderes em amor. Maria - perdida naquele beijo - nunca mais se encontrou. A relação deles fazia-a sentir a menina mais amada do mundo. Eles uniam-se sem se tocar. Conversavam horas sem fim. Desejavam que o final do dia e o regresso a casa nunca chegassem. Naquele momento recordou-se dos cheiros que trazia consigo. O cheiro do amor. Da inocência. Da adoração. Anos volvidos… Por segundos, passou pela cabeça dela tentar; por segundos, passou pela cabeça dele tentar; mas, na realidade, nenhum deles conseguiu afinar a bússola para regressar. Aquele momento em que os seus corpos combateram, finalmente, foi um culminar de desejos acumulados, de sonhos destroçados, de amores impensáveis. Eles nunca mais se cruzaram. Os seus olhos nunca mais cintilaram juntos. Os seus cheiros nunca mais foram perfume. Os seus lábios nunca mais guerrearam. Mas Maria sabe que, depois daquele adorar, nunca mais caminhou sozinha no trilho do amor. E, bem no fundo do seu coração, ela tem a esperança que o menino lanterna verde, algures na sua melodia, traga um pouco dela, da mesma forma que ela caminha com “o primeiro “ de tudo dele. Naquele momento conseguiu voltar a sentir a felicidade do amor e, por relances, esqueceu o mar de tristeza onde se debatia para não se afogar. Ela sorriu: este é o amor que fica para sempre cravado nas almas; é este que um dia me fez cheirar o outro a km de distância e sorrir a cada passo. É este que a ânsia da chegada cria um frémito de palpitações. E não é que é mesmo aquele das borboletas na barriga. Ah - como adorava o seu primeiro amor. Tão primeiro, quanto único. Tão saudado, quanto inesquecível. O primeiro amor que tantos sonhos lhe criou. E tantas frustrações lhe trouxe. Foi ele que a definiu. Definiu-a enquanto amor eterno. Foi nesse amor que ela desapareceu e se encontrou. A menina deu lugar à mulher. Os sonhos transformaram-se em realidades e nunca mais ela foi a mesma depois desse amor. Mas o coração, o coração ela não conseguia controlar. E tentou. Tentou muito. Manteve-o trancado em lume brando. Mas, de tão intenso que era, quase se via o seu pulsar rebelde e irreverente, bem por baixo da camisa branca de seda que envolvia o seu peito. Em segundos, relembrou quem é e o que está a viver e soube - ali- que tudo iria correr bem: ela era a filha do amor e da tempestade.